Pular para o conteúdo principal

Quincas Borba (1891) - resenha

Sem revelações significativas do enredo.

“Ao vencedor, as batatas”, tal é a frase que Pedro Rubião repete do início ao fim de Quincas Borba, de Machado de Assis. Trata-se de um enunciado proferido inicialmente pelo filósofo do título, numa tentativa de explicar ao referido Rubião sua doutrina, denominada por ele Humanitas. Assim, a situação hipotética de um campo de batatas e duas tribos famintas é evocada. Quincas Borba, então, propõe:

Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas chegam para alimentar uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividem em paz as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das tribos extermina a outra e recolhe os despojos. [...] Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas. (ASSIS, M. “Quincas Borba”. Sedregra, Rio de Janeiro, s.d., p. 20)

Na ocasião em que a alegoria acima é demonstrada, o filósofo encontra-se acamado, em razão de doença. Rubião, que aceita tornar-se seu discípulo, desempenha o papel de enfermeiro. Antes disso, tentara casar a própria irmã com o abastado homem. No entanto, Maria da Piedade, a irmã de Rubião, uma viúva “de condição mediana”, morrera por pleuris antes mesmo de ter a oportunidade de novamente subir ao altar. Rubião, por sua vez, era professor numa escola de meninos, a qual fechou para tratar do antigo pretendente da irmã. O professor de Barbacena, então, torna-se o único amigo do enfermo. Apenas um cão, com o mesmo nome de seu dono, disputa o coração do filósofo. Bem este morre, faz de Rubião seu herdeiro universal, com a única condição de que cuidasse do cachorro, resguardando-o de quaisquer males que lhe pudessem causar. Surpreso com tamanha reviravolta em sua vida, Rubião chega a sentir remorso por esconder do médico do filósofo uma carta que, como ele supõe, evidenciaria o estado mental abalado de seu mestre e amigo, o que poderia invalidar o testamento.
            Contudo, o remorso logo é substituído por outro sentimento, o de triunfo, e Rubião sente que finalmente, após falhar tantas vezes em prosperar com empresas que “morreram em flor”, Deus decidira ajudá-lo. Pela primeira vez, então, ele profere o enunciado: “Ao vencedor, as batatas”. Mesmo sem entendê-la completamente, passa a repetir a fórmula, tão simples e clara. Ao final do livro, quando sua vida já não é mais a mesma, após sofrer outra reviravolta, Rubião segue repetindo o enunciado, mesmo que já não compreenda absolutamente seu significado.
            Segundo romance da trilogia realista de Machado de Assis, da qual fazem parte Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, Quincas Borba dá continuidade a uma série de elementos e temas característicos do autor: o pessimismo e a ironia próprios de Machado, por exemplo, estão presentes nesse romance. Leitura obrigatória de vestibulares e processos seletivos de várias universidades do país, as personagens, a trama e determinadas passagens de Quincas Borba são amplamente conhecidas, até mesmo por aqueles que nunca sequer o abriram. A frase que inicia este texto, por exemplo, é familiar a qualquer estudante de ensino médio. Não faz sentido, portanto, abordar aqui o que os livros didáticos e apostilas ensinam sobre esse livro.
            Nesse sentido, Quincas Borba é um daqueles clássicos da literatura brasileira que todo mundo é obrigado a ler durante o período escolar, mas que, por vários motivos, ninguém lê, e os professores são levados a elaborar resumos que revelam todos os acontecimentos importantes e reviravoltas da trama. Infelizmente, na maioria das vezes, esse é o único contato que os jovens têm com a obra. Eu mesmo não a li quando deveria ter lido. Antes tarde, porém, do que nunca. Dessa forma, somo-me ao coro dos professores de português e faço um apelo aos alunos: leiam Quincas Borba! Não só por ser um clássico da literatura nacional, mas por realmente ser um bom romance. Todos da trilogia realista machadiana, aliás, são excelentes, e o meu favorito – por mais clichê que isso seja – ainda é Dom Casmurro.
            Sim, os mais jovens e leitores iniciantes podem encontrar algumas dificuldades com a linguagem, mas nada que um dicionário – mesmo um online – não resolva. A linguagem de Machado de Assis não é tão difícil quando você se familiariza a ela. E uma boa maneira de começar é lendo os seus romances, começando com Memórias Póstumas de Brás Cubas, livro no qual o filósofo Quincas Borba aparece pela primeira vez. Mas isso não é obrigatório. As narrativas são independentes, embora o criador de Humanitas dê as caras naquele romance. Já os leitores assíduos de literatura brasileira (especialmente a do século XIX) não devem encontrar dificuldades, o que já é um bom motivo para aqueles que – como eu – não leram o livro durante o ensino médio, o leiam agora.
            Tendo isso em mente, gostaria, ainda assim, de abster-me de revelar informações cruciais da trama. Sim, é um clássico, mas nem por isso quero desestimular os potenciais leitores destrinchando a obra do começo ao fim. É curioso, porém, observar como alguns personagens parecem querer se aproveitar de sua relação com Rubião. A começar com Cristiano Palha, que conhece o mineiro em uma viagem de trem e, após alguma conversação e alguma confidência deste com relação a seu patrimônio, já lhe oferece a casa e todas as cortesias. E mesmo quando o atrapalhado ex-professor corteja a bela Sofia, esposa do mencionado Cristiano Palha, este se recusa a fechar-lhe as portas por lhe dever muito dinheiro, chegando mesmo a convidá-lo para uma sociedade anônima. O doutor Camacho, por outro lado, homem metido em política, após fazer de Rubião sócio da folha que edita, enche-lhe de promessas de grandeza que nunca se cumprem, enchendo os olhos do herdeiro de Quincas Borba e estimulando-lhe a imaginação a tal ponto que chega a ser absolutamente compreensível que ele encontre o desfecho que encontrou. A paranoia crescente de Rubião – chegando mesmo a cogitar se a alma do Quincas Borba original habitaria o corpo do cão de mesmo nome – também parece dar pistas do que o destino lhe reservaria.
            O realismo literário do século XIX buscou explorar o lado verdadeiramente humano das personagens de ficção, mostrando-as frequentemente como invejosas, interesseiras, mentirosas e infiéis. A infidelidade conjugal (ou simplesmente o sexo fora do casamento), inclusive, parece ser um tema recorrente no realismo. Mesmo quando ela não é concretizada ou efetivamente comprovada, é ao menos cogitada ou sugerida. Da mesma forma que Machado deixou em aberto o final de Dom Casmurro, já amplamente conhecido (Capitu traiu Bentinho ou não?), ele o faz com Quincas Borba. Afinal de contas, quem é que dá nome ao livro, o amigo e mestre de Rubião ou o seu fiel companheiro canino?

Avaliação: 5/5

8 de março de 2017, Renan Almeida.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Ônibus, pessoas em um ônibus, luta pela sobrevivência.

Gostou da foto? Acredito que você já passou isso na sua vida. Mas é com essa foto mesmo que vou começar. Brasilia-DF, capital do Brasil, um lugar que há 50 anos era uma cidade dos sonhos, com monumentos lindos, cidades planejadas, transporte excelente.... não posso falar que eram bons tempos, pois não estava vivo naquele tempo, mas acho que era bom. Ônibus Hoje temos cidades desorganizadas e um transporte publico horrível. Quantas vezes já não passaram por essa cena da imagem acima? Às vezes eu me pergunto o que foi que eu fiz, pra ter que passar por algo assim. Eu tenho que pegar um onibus que já vem cheio, eu e meus amigos esperamos mais um, mas por que tenho que esperar mais 30 minutos pra ele passar? Às vezes não é nem culpa do motorista, no horario de pico é realmente complicado o desenvolvimento do ônibus. Mas se as empresas sabem disso, POR QUE QUE ELAS MANDAM SÓ UM ONIBUS ? Acho que eles pensam assim " Vou mandar só um e eles que se virem ...

Aborto e legalização da maconha.

Ok, eu sei que são temas um pouco ultrapassados, mas gostaria de discutí-los mesmo assim. Primeiramente o aborto. Eu, particularamente, sou contra a prática do aborto, mas essa é a minha opinião. Analisando o problema criticamente, sou a favor da legalização, pelo simples fato de que todos os dias um número considerável de mulheres o realiza. Sejamos realistas, proibir não vai fazer com que esse número decresça. Aí é que surge um grande problema: com a proibição do aborto, as mulheres que não desejam ter filhos irão procurar clínicas ilegais e acabarão por contrair algum tipo de doença ou coisa que o valha. Ao meu ver, a solução é legalizar e preparar um atendimento de qualidade e sem riscos (sim, eu sei que todas as cirurgias têm risco, mas dê por entendido). Paralelamente à isso, seria plausível criar programas de prevenção e educação sexual, pois ainda existem muitas pessoas ignorantes nesse país. Passemos para a maconha, sobre sua legalização. Ess...

Mensagens subliminares, você acredita?

Mensagem subliminar é toda a mensagem que não é perceptível à nossa consciência. Para algumas pessoas essas mensagens ficam gravadas no subconsciente de alguém exposto a ela e coage essa pessoa a fazer algo. Esse argumento não tem nenhuma base científica. Se pensarmos bem, não existe nenhuma mensagem subliminar. Porque quando uma destas é descoberta deixa de ser subliminar. Mas pode acontecer de elas de fato existirem e não termos conhecimento disso, falo das mensagens ainda não descobertas. Eu, particularmente, acredito em mensagens subliminares, mas não creio que elas possam lhe fazer algum mal. Existem tipos variados de mensagem subliminar: podem ser em imagens, letras de músicas, poemas, músicas etc. As mensagens supostamente encontradas em músicas são descobertas invertendo-a. Isso se chama Backmasking. Abaixo, um exemplo de mensagem subliminar: Essa tá fácil. Uma vez descoberta, nunca mais você terá dificuldade em vê-la novamente. Aind...