Sem revelações significativas do enredo.
“Ao
vencedor, as batatas”, tal é a frase que Pedro Rubião repete do início ao fim
de Quincas Borba, de Machado de
Assis. Trata-se de um enunciado proferido inicialmente pelo filósofo do título,
numa tentativa de explicar ao referido Rubião sua doutrina, denominada por ele
Humanitas. Assim, a situação hipotética de um campo de batatas e duas tribos
famintas é evocada. Quincas Borba, então, propõe:
Supõe
tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas chegam para alimentar
uma das tribos, que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra
vertente, onde há batatas em abundância; mas, se as duas tribos dividem em paz
as batatas do campo, não chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de
inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guerra é a conservação. Uma das
tribos extermina a outra e recolhe os despojos. [...] Ao vencido, ódio ou
compaixão; ao vencedor, as batatas. (ASSIS, M. “Quincas Borba”. Sedregra, Rio
de Janeiro, s.d., p. 20)
Na ocasião em que a
alegoria acima é demonstrada, o filósofo encontra-se acamado, em razão de
doença. Rubião, que aceita tornar-se seu discípulo, desempenha o papel de
enfermeiro. Antes disso, tentara casar a própria irmã com o abastado homem. No
entanto, Maria da Piedade, a irmã de Rubião, uma viúva “de condição mediana”, morrera
por pleuris antes mesmo de ter a oportunidade de novamente subir ao altar.
Rubião, por sua vez, era professor numa escola de meninos, a qual fechou para
tratar do antigo pretendente da irmã. O professor de Barbacena, então, torna-se
o único amigo do enfermo. Apenas um cão, com o mesmo nome de seu dono, disputa
o coração do filósofo. Bem este morre, faz de Rubião seu herdeiro universal,
com a única condição de que cuidasse do cachorro, resguardando-o de quaisquer
males que lhe pudessem causar. Surpreso com tamanha reviravolta em sua vida,
Rubião chega a sentir remorso por esconder do médico do filósofo uma carta que,
como ele supõe, evidenciaria o estado mental abalado de seu mestre e amigo, o
que poderia invalidar o testamento.
Contudo,
o remorso logo é substituído por outro sentimento, o de triunfo, e Rubião sente
que finalmente, após falhar tantas vezes em prosperar com empresas que
“morreram em flor”, Deus decidira ajudá-lo. Pela primeira vez, então, ele
profere o enunciado: “Ao vencedor, as batatas”. Mesmo sem entendê-la
completamente, passa a repetir a fórmula, tão simples e clara. Ao final do
livro, quando sua vida já não é mais a mesma, após sofrer outra reviravolta,
Rubião segue repetindo o enunciado, mesmo que já não compreenda absolutamente
seu significado.
Segundo
romance da trilogia realista de Machado de Assis, da qual fazem parte Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, Quincas Borba dá continuidade a uma série de elementos e temas
característicos do autor: o pessimismo e a ironia próprios de Machado, por
exemplo, estão presentes nesse romance. Leitura obrigatória de vestibulares e
processos seletivos de várias universidades do país, as personagens, a trama e
determinadas passagens de Quincas Borba
são amplamente conhecidas, até mesmo por aqueles que nunca sequer o abriram. A
frase que inicia este texto, por exemplo, é familiar a qualquer estudante de
ensino médio. Não faz sentido, portanto, abordar aqui o que os livros didáticos
e apostilas ensinam sobre esse livro.
Nesse
sentido, Quincas Borba é um daqueles
clássicos da literatura brasileira que todo mundo é obrigado a ler durante o
período escolar, mas que, por vários motivos, ninguém lê, e os professores são levados
a elaborar resumos que revelam todos os acontecimentos importantes e
reviravoltas da trama. Infelizmente, na maioria das vezes, esse é o único
contato que os jovens têm com a obra. Eu mesmo não a li quando deveria ter
lido. Antes tarde, porém, do que nunca. Dessa forma, somo-me ao coro dos
professores de português e faço um apelo aos alunos: leiam Quincas Borba! Não só por ser um clássico da literatura nacional,
mas por realmente ser um bom romance. Todos da trilogia realista machadiana,
aliás, são excelentes, e o meu favorito – por mais clichê que isso seja – ainda
é Dom Casmurro.
Sim,
os mais jovens e leitores iniciantes podem encontrar algumas dificuldades com a
linguagem, mas nada que um dicionário – mesmo um online – não resolva. A
linguagem de Machado de Assis não é tão difícil quando você se familiariza a
ela. E uma boa maneira de começar é lendo os seus romances, começando com Memórias Póstumas de Brás Cubas, livro
no qual o filósofo Quincas Borba aparece pela primeira vez. Mas isso não é
obrigatório. As narrativas são independentes, embora o criador de Humanitas dê
as caras naquele romance. Já os leitores assíduos de literatura brasileira
(especialmente a do século XIX) não devem encontrar dificuldades, o que já é um
bom motivo para aqueles que – como eu – não leram o livro durante o ensino
médio, o leiam agora.
Tendo
isso em mente, gostaria, ainda assim, de abster-me de revelar informações
cruciais da trama. Sim, é um clássico, mas nem por isso quero desestimular os
potenciais leitores destrinchando a obra do começo ao fim. É curioso, porém,
observar como alguns personagens parecem querer se aproveitar de sua relação com
Rubião. A começar com Cristiano Palha, que conhece o mineiro em uma viagem de
trem e, após alguma conversação e alguma confidência deste com relação a seu
patrimônio, já lhe oferece a casa e todas as cortesias. E mesmo quando o
atrapalhado ex-professor corteja a bela Sofia, esposa do mencionado Cristiano
Palha, este se recusa a fechar-lhe as portas por lhe dever muito dinheiro,
chegando mesmo a convidá-lo para uma sociedade anônima. O doutor Camacho, por
outro lado, homem metido em política, após fazer de Rubião sócio da folha que
edita, enche-lhe de promessas de grandeza que nunca se cumprem, enchendo os
olhos do herdeiro de Quincas Borba e estimulando-lhe a imaginação a tal ponto
que chega a ser absolutamente compreensível que ele encontre o desfecho que encontrou.
A paranoia crescente de Rubião – chegando mesmo a cogitar se a alma do Quincas
Borba original habitaria o corpo do cão de mesmo nome – também parece dar
pistas do que o destino lhe reservaria.
O realismo literário do século XIX
buscou explorar o lado verdadeiramente humano das personagens de ficção,
mostrando-as frequentemente como invejosas, interesseiras, mentirosas e
infiéis. A infidelidade conjugal (ou simplesmente o sexo fora do casamento),
inclusive, parece ser um tema recorrente no realismo. Mesmo quando ela não é
concretizada ou efetivamente comprovada, é ao menos cogitada ou sugerida. Da
mesma forma que Machado deixou em aberto o final de Dom Casmurro, já amplamente conhecido (Capitu traiu Bentinho ou
não?), ele o faz com Quincas Borba.
Afinal de contas, quem é que dá nome ao livro, o amigo e mestre de Rubião ou o
seu fiel companheiro canino?
Avaliação:
5/5
8
de março de 2017, Renan Almeida.
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